Cientistas querem prazo menor para pesquisa com humanos
Fonte: UNIFESP
Data de publicação: 10 de junho de 2015
Cientistas permanecem descontentes com a burocracia e a morosidade do sistema regulatório da pesquisa clínica no Brasil, mesmo com as novas regras da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que reduziu, pela metade, o prazo de avaliação dos estudos clínicos no início deste ano. A decisão, porém, é elogiada por dirigentes da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma).
O tempo de análise dos projetos de pesquisa com humanos para produção de medicamentos, que era de 12 a 15 meses (ou seja, podia superar 360 dias) foi reduzido para seis meses – ainda acima da média mundial.
Para pesquisadores, a decisão da Anvisa segue na contramão do esforço de alguns órgãos federais, como FINEP e BNDES, que nos últimos três anos criaram linhas de fomento bilionárias para o desenvolvimento de medicamentos nacionais, principalmente os biológicos – elaborados por intermédio da biotecnologia. Trata-se de drogas para o tratamento de enfermidades crônicas, como diversos tipos de câncer, e doenças raras.
Para fazer frente a esses desafios, a Anvisa publicou, no início de março deste ano, a Resolução nº 9 pela qual reduziu para seis meses o prazo de análise da pesquisa clínica, na tentativa de acelerar a análise dos protocolos de pesquisa e atender a demanda local.
Competitividade ainda comprometida
A medida, porém, é fonte de preocupação de cientistas. Luiz Augusto Russo, presidente do Centro de Pesquisa do Brasil (CCBR) e vice-presidente da Aliança Pesquisa Clínica Brasil, reconhece alguns avanços na nova legislação da agência reguladora. Considera, porém, longo o prazo para análise dos estudos clínicos, por permanecer distante da média mundial e inibir a competitividade das pesquisas clínicas do Brasil no cenário internacional.
Russo citou como exemplo os Estados Unidos, onde o FDA (FoodDrug Administration), órgão regulador do governo americano semelhante a Anvisa, avalia um projeto de pesquisa dentro de 45 a 60 dias. Em outros países líderes em pesquisa, como Coreia do Sul, Austrália, Canadá e alguns países da União Europeia, uma avaliação semelhante é concluída em até 90 dias.
“A nova resolução Anvisa trouxe avanços de um lado, mas deixou a desejar de outro”, lamenta Russo, que entende do assunto. Ele é médico e pesquisador de novos medicamentos para diabetes, colesterol, hipertensão e osteoporose; é mestre e doutor em endocrinologia e diabetes; e doutor na área de saúde coletiva da mulher e da criança na Fiocruz, no Rio de Janeiro.
O ponto positivo da medida, segundo Russo, é o que estabelece limite máximo de 90 dias para avaliar projetos de pesquisa clínica para medicamentos de origem química (os sintéticos) – cuja maioria esmagadora é importada e produzida pelas multinacionais.
Caso a agência não se manifeste até o prazo de 90 dias, a pesquisa fica automaticamente liberada, o que representa um fator inédito “Pela primeira vez a Anvisa dá o braço a torcer”, comemora Russo. Para ele, o ideal seria estender esse prazo também para todos os projetos nacionais de pesquisa clínica.
Para esses casos, a Anvisa prevê apresentar o parecer dentro do prazo. Em resposta ao Jornal da Ciência, a Anvisa esclarece que os projetos de pesquisas para medicamentos sintéticos têm menos risco. Porque são produtos registrados em seus países de origem e avaliados pela agência americana; ou pelo órgão regulador europeu – a Agência Europeia de Medicamentos (EMA).
O órgão regulador brasileiro esclarece, ainda, que os prazos estabelecidos na resolução nº 09 atendem a anseios “do setor regulado que cobrava da Anvisa uma previsibilidade em relação ao tempo demandado para a análise de processos de ensaios clínicos submetidos à agência brasileira.”
O presidente do Centro de Pesquisa do Brasil, Russo, conclui que o País tem muito espaço para evoluir, nessa área, e entende que não dá para comparar a Anvisa, que é uma agência nova, com menos de 20 anos, com o FDA, por exemplo, que é quase centenário. Apesar de ser o sexto maior mercado consumidor de medicamento, vale destacar que o Brasil historicamente registra déficit superior a US$ 10 bilhões por ano na balança comercial de fármacos, o que pode refletir a dificuldade interna para produção de medicamentos.
Pesquisas para vacinas
Especialistas do Instituto Butantan também questionam às novas regras da Anvisa. O professor Jorge Kalil, diretor do Instituto e responsável pelo desenvolvimento de uma vacina contra a dengue, e o professor Alexander Precioso, diretor de Ensaios Clínicos e Farmacovigilânica, da mesma instituição, reconhecem que, a princípio, as tentativas da Anvisa – de regulamentar os procedimentos para realização de ensaios clínicos e de possibilitar a solicitação de registro para os produtos investigados – devem ser encaradas como avanços. Porque, nesse caso, avaliam, a Anvisa pode harmonizar e deixar claro os requisitos necessários.
Os dois especialistas do Butantan afirmam, porém, que a resolução da Anvisa ainda traz questões que podem gerar mais dúvidas do que esclarecimentos. Uma delas é o fato de ter focado no termo medicamentos, o que não possibilita abordagens específicas para a classe de imunobiológicos, a qual inclui as vacinas. Segundo eles, há necessidade de que se estabeleçam regulamentações específicas para a classe de imunobiológicos.
Os especialistas do Butantan também consideram lento o tempo que o corpo técnico da Anvisa leva para avaliar projetos de pesquisas clínicas. Par eles, as principais dificuldades incidem sobre o tempo prolongado para aprovação dos procedimentos regulatórios e éticos, em especial para estudos de fases I e II de produtos desenvolvidos no País. Eles também veem como problema a carência de recursos financeiros para manutenção de centros de pesquisa clínica e seus pesquisadores; e da formação e disponibilidade de recursos humanos que possam atuar integralmente na realização da pesquisa clínica.
Pesquisas com animais
No caso dos estudos pré-clínicos, os especialistas do Butantan acreditam que a situação é ainda mais grave, em razão da falta de centros de excelência para realização desses estudos.
O presidente do Centro de Inovação e de Ensaios pré-clínicos (Cienp), João Batista Calixto, também reclama da burocracia presente tanto nos estudos clínicos como nos pré-clínicos do País. “Temos problemas em todos os caminhos. Não se pode limitar o problema da produção de medicamentos no País às pesquisas clínicas. O Brasil precisa dominar a cadeia”, recomendou Calixto, graduado em Ciências Biomédicas na Universidade de Brasília, mestre em Farmacologia na Escola Paulista de Medicina/UNIFESP e doutor em Farmacologia na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/USP.
O Cienp começou a operar em 2013, fruto de investimentos de R$ 13 milhões, e é um dos primeiros do país em tecnologia de ponta para realização de testes de toxidade em animais para produção de medicamentos.
Dinheiro, sozinho, não é a solução
Para Calixto, a burocracia presente no processo de avaliação da Anvisa contraria os esforços dos órgãos do governo federal responsáveis pela política forte de subvenção. “Dinheiro, sozinho, não resolve os problemas. Porque as amarras continuam”, opinou.
Com posicionamento semelhante, os especialistas do Instituto Butantan afirmam que, além da liberação de verba, é fundamental criar uma política de integração entre os setores que atuam diretamente em pesquisa e desenvolvimento (P&D), os laboratórios públicos capazes de produzir imunobiológicos e outros produtos farmacêuticos. E também as instâncias regulatórias e éticas, para fortalecer a autossuficiência brasileira nesse setor.
Nova Anvisa
Ao mesmo tempo em que cientistas defendem melhorias na nova legislação da Anvisa, dirigentes da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma) comemoram as mudanças.
Para o presidente da instituição, Antônio Britto, as novas normas refletem novas visões da Anvisa. “A Anvisa revisou conceitos e processos. Isso não teria ocorrido se a `cabeça da Anvisa` não tivesse mudado.”
No caso da revisão de conceitos, Britto se refere à forma de como os projetos serão vigiados. Já na revisão de processos, ele refere-se ao novo prazo estabelecido para o crivo dos projetos de pesquisas. Lembrou “da situação dramática” que era quando o corpo técnico da Anvisa levava mais de 360 dias para avaliar os protocolos de pesquisa.
Embora reconheça o descontentamento de cientistas em relação ao prazo ainda longo, Britto acredita que o mais importante é a Anvisa se organizar para a nova demanda. “Para quem não tinha prazo agora ter um prazo de três ou seis meses é um extraordinário avanço.”
Mesmo assim, Britto acende o sinal amarelo. “A questão principal é saber se a Anvisa vai cumprir o que prometeu.” Ele recomenda paciência e espera que a Anvisa cumpra os prazos estabelecidos para funcionar com praticidade.
Há quem diga que o órgão regulador não possui corpo técnico suficiente para atender as demandas. Em resposta, a Anvisa diz que na área de pesquisa clínica há um corpo técnico de servidores públicos concursados da carreira de “especialista em regulação e vigilância sanitária”. Possui uma equipe multidisciplinar (médicos, farmacêuticos, estatísticos, biomédicos e biólogos) e muitos desses trabalham por mais de dez anos com pesquisa clínica. Diz que há especialistas, mestres, doutores e doutorandos.
“Acrescentamos que a equipe participa de capacitações nacionais e internacionais sobre o tema, de grupos de discussão estabelecidos pela OMS (Organização Mundial da Saúde) e outras agências reconhecidas na área regulatória como EMA e FDA”, responde a Anvisa. “Ressaltamos que a Anvisa é uma autoridade de referência mundial, pré-qualificada tanto pela OPAS quanto pela OMS.”
Sistema CEP/CONEP
O presidente da Interfarma fez um alerta também sobre o sistema CEP/Conep, vinculado ao Ministério da Saúde. Todo protocolo de pesquisa passa por duas etapas. Uma é avaliação ética pelo sistema CEP/Conep. A outra é a avalição da Anvisa.
Segundo Antônio Britto, o sistema CEP/ Conep precisa passar pela “mesma mudança de mentalidade” que está ocorrendo na Anvisa. “Não queremos nenhuma redução das exigências ou menos ética. O que é necessário é reduzir a burocracia.”